A escola pública é a Geni
A sociedade brasileira tem criticado a escola com todas as suas forças, desvalorizado o profissional e evitando enfrentar o problema de uma vez por todas
Atualmente vivemos em sociedades complexas, onde a distribuição urbana tradicional, com a praça rodeada pela prefeitura, igreja, clube, teatro e escola não descreve mais as intenções desta sociedade: governar, catequizar, reunir, divertir e ensinar. Hoje temos shoppings, land houses, locadoras de DVDs, fast food, academias de ginástica, supermercados, butiques de roupas, sapatos e pães, clínicas para os mais variados fins, enfim, é uma rede de atrativos e funções interminável. E a escola onde fica? À margem deste processo, assim como a prefeitura, a igreja e até a praça (o clube e o teatro foram redimensionados, mas se sustentam, pois estão vinculados com o produto da hora: a diversão).
A escola, a partir da segunda metade do século 20, vem sendo permanentemente criticada dentro da sociedade, o que reflete no valor que lhe é empregado e na sua efetiva função social. A década final daquele século e estes primeiros anos do 21 apresentam de forma gritante este desgaste crônico que vem corroendo o sistema de ensino brasileiro. Primeiro, a substituição da aquisição cultural escolar pela da mídia, descartável e questionável (inclusive quanto ao conceito de cultura!); depois, a sistemática desvalorização do profissional desta instituição, desestabilizando a própria credencial de profissional atribuída ao professor; por fim, os meios de comunicação, que corroboram com a depreciação do professor e da escola, veiculando por todos os seus meios, matérias, muitas vezes tendenciosas, em que a crise do ensino existente hoje é fruto basicamente do despreparo profissional e do descaso deste por seus alunos ou pelo próprio conhecimento. Ainda assim, o ensino é ingrediente farto na maioria dos discursos políticos, principalmente em épocas eleitorais. Por quê?
O ensino é a Geni da nossa sociedade complexa. Sua função é inevitável, seja para dar noções de convívio social, seja para ensinar os princípios básicos da matemática e da escrita, seja para formar futuros profissionais (sem comentários acerca da qualificação, que perpassa a construção pessoal e sua integração no coletivo), a escola, instituição que concentra os elementos cardeais do ensino: professores, alunos, salas de aula, móveis, materiais escolares, funcionários da educação..., é o lugar pelo qual todo cidadão deve e deveria passar alguns anos de sua vida. Seria na escola que a sociedade deveria construir e sustentar suas amarras, pois nem todos seremos médicos, políticos ou mesmo professores, mas todos fomos alunos.
Mas acontece o inverso. A escola tornou-se o único local onde a democracia é vociferada. Tudo lá e de lá pode ser dito. Políticos fazem promessas e depois repassam às direções e funções escolares a responsabilidade pela crise e pela busca de solução; pais em geral contribuem com críticas (quando não com ofensas), mas dificilmente com soluções; alunos desrespeitam professores, colegas e a estrutura física empregada para o ensino, não entendem e não veem razão para estarem ali; os meios de comunicação que buscam vender seus jornais, revistas ou captarem telespectadores para seus telejornais, divulgam matérias muitas vezes suspeitas, com interpretações distorcidas, em que questionam atuação e qualidade profissional de professores, desmerecem reivindicações por melhores salários ou condições de trabalho, e glorificam a função altruísta do professor como vocação, abnegação e complacência. Não tem escapatória, todos jogam pedra na Geni!
Nesta sociedade em crise, em que falta casa, comida, saúde, emprego, afeto, não falta “lugar na escola”. Toda criança tem direito a ela (assim como deveria ter direito a tudo mais aqui citado) e agora parece que a escola tem que suprir os demais. É na escola que a criança deve receber o afeto que lhe falta fora dela, a comida que não lhe é oferecida em outro lugar, o cuidado com a saúde que não é observado por mais ninguém, e ainda alfabetizar e desenvolver conhecimentos para dar condições a este jovem de ingressar na sociedade de trabalho qualificado. A escola pública foi transformada num poço de bondade.
Então, quando os governos desejam verificar a quanto anda a qualidade do ensino, aplicam uma prova, na qual crianças oriundas de não lares, famintas de comida e motivos, devem responder a questões as quais não perguntam sobre sua vida nem lhe indicam razões para ser quem são. As respostas dadas por estes jovens serão entendidas como as respostas da escola e de seus professores, e que acabam por não atingir aquilo que foi externamente entendido como obrigação da instituição pública referida: obtenção de uma classificação quantitativa positiva. A escola pública encobre as demais necessidades, sem conseguir realizar as suas próprias. O sacrifício é em vão e não há reconhecimento. Da criança de um mundo de fome e miséria, sem razões para responder às questões da prova, transferem o fracasso para a escola, que não a transformou num aluno competente e capaz. Estaria aqui, então, uma razão, entendida pelos governos e estendida à opinião pública, de manter baixos os salários e as verbas do ensino?
Porém, há um paradoxo misterioso nisto tudo: qual a razão da educação ser objeto concorrido nos discursos políticos em campanhas e objeto de desprezo fora delas? Um povo bem-educado (no sentido formal) não iria retribuir àquele que lhe permitiu acesso a esta boa educação? Cidadãos bem-preparados não formariam profissionais mais qualificados e, portanto, otimizariam suas funções e os recursos utilizados (o que também abarcaria o meio ambiente)? Será que não há respostas para nenhuma destas questões?
Não há dúvida, a educação está em crise, e com ela a escola e seus profissionais. A onda de massificação massificada de tudo, que nessas últimas décadas sacrifica a qualidade, não sendo mais este um adjetivo com verdadeiro significado, cobre o sistema de ensino até o pescoço, mal o mantendo vivo. A escola deve ser resgatada do meio dessa lama toda que a asfixia, não para retomar o que foi há décadas, mas para estar em dia com o contexto no qual vivemos. Não é com críticas e xingamentos que isso será feito, nem da noite para o dia, todavia o caminho tem que ser traçado e o primeiro passo dado. Devemos nos perguntar qual a função da escola, se é a de preencher os vazios deixados pelo governo e por demais instituições sociais ou desempenhar um papel exclusivo, de ensinar, dar disciplina para que as ideias não se percam na bagunça dos pensamentos, desenvolver o desejo em aprender, permitir que o tempo de aprendizagem seja usado para isso mesmo, não para desordem, desconstrução ou esvaziamento. A escola deve ser escola e não outra coisa inominável na qual está se tornando.
Parece que há um ciclo de formação de opinião que precisa ser rompido. Enquanto nenhuma voz se erguer mais alto que as demais e argumentar que a escola não é a Geni, a educação ainda será a escarradeira social, o saco de pancadas político, e a prostituta do jornalismo.
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